Frei Carlos Susin: Tema e lema do Capítulo para construir novos tempos

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Paz e Bem!

A alegria fraterna e o júbilo do reencontro estampavam as faces dos confrades reunidos em capítulo! É o Espírito Santo quem realmente conduz o andamento dos Capítulos da Ordem dos Frades Menores, por isso Ele é celebrado do início ao fim do encontro. Os frades querem se colocar sob a inspiração mais acurada do Paráclito, e para isso dedicam-se à oração, contemplação e fraternidade. O primeiro dia do Capítulo Provincial de 2021 é dedicado à oração, contemplação e meditação, um dia de retiro e inspiração.

O confrade capuchinho Frei Luiz Carlos Susin disse sentir-se honrado em assessorar esse primeiro dia, conduzindo a meditação do retiro em nosso capítulo. Capítulo é o mais próximo que temos da sinodalidade, tão importante para a Igreja e que está tão presente no caminho franciscano. Se propôs a refletir sobre nosso tema e lema do capítulo, que contém palavras fortes, para estabelecermos fundamentos sobre os quais queremos construir novos tempos.

“Juntos que se constroem os sonhos”! Para sonhar bem é preciso dormir bem! Citando o ambientalista Ailton Krenak, Frei Susin lembrou que nossa sociedade está cada vez mais insone, cada vez mais pressionada para resolver as coisas em velocidade. Citando um sábio que dizia: “Quando não conseguimos resolver alguma coisa, vamos dormir, e no outro dia perguntamos o que sonhamos”, quis recordar a grandeza da palavra e do sentido de sonhar juntos.

“Fraternidade Contemplativa em Missão: nossa regra é o Evangelho, nosso claustro é o mundo”.

Claustro é outra palavra importante, porque lembra um modelo monástico, de estar sozinho. Mesmo os padres diocesanos, por vezes, têm dificuldade em se libertar desse estar sozinho que isola. Mas quando colocamos que nosso claustro é o mundo, criamos um paradoxo, um claustro aberto, que não isola mas que expande.

Convento tem esse sentido diferente de monastério, pois a palavra remete não às construções, mas a congresso, a encontro.

O lema ainda ressalta que é juntos que se constroem os sonhos… Juntos! Isso é sinodalidade! Estamos vivendo a Assembleia Eclesial Latinoamericana, juntos repensando nosso modo de ser Igreja, e vemos que a estrutura, e o próprio Direito Canônico, ainda não assumiu a eclesiologia do Vaticano II. Ainda temos o desafio de nos organizarmos com referência e centralidade mas de uma forma que funcione de modo sinodal.

Na Evangelii Gaudium, um dos títulos diz assim: “Na crise do compromisso comunitário”. É disso que estamos falando, pois são os laços de pertença que estão em crise devido a uma centralização do “eu”, uma personalização desacerbada. E não é centrado no “eu”, mas sim com sensibilidade pastoral que precisamos olhar para o mundo.

Nesse sentido, Francisco ainda é chamado de totus catholicus et apostolicus… uma catolicidade que abrange o muçulmano, que abraça os passarinhos, o lobo…

Hoje precisamos olhar para tudo com essa sensibilidade. Inclusive para a tecnologia, que não é apenas um instrumento nem está apenas em alguns instrumentos, mas que se tornou um ambiente. E causa transformações no mundo. O perigo é criar simulacros! A internet, por exemplo, é agente de transformação… com ela a comunicação mudou, passou de uma era em que poucos comunicavam para muitos, para um modelo em que a comunicação ocorre de muitos para muitos! Parece uma democratização, ao menos em tese, mas não é só isso. Basta olharmos para conceitos como pós-verdade e fake news para reconhecermos o verdadeiro caos da informação!

Talvez nesse sentido que Platão tivesse medo da multidão. Ele defendia o governo por uma aristocracia, pelos melhores qualificados intelectualmente, e não por todo o povo (democracia).

Mas para organizar a multidão, organizar o caos da informação hoje temos o algoritmo! É um algoritmo que vai, em meio a tantas escolhas e preferências que você manifesta e informa, copiando padrões, oferecer algo que expressa esses mesmos interesses. No fundo vai fechando em bolhas, padrões. Totus catholicus precisa furar essas bolhas do eu. Nos fechamos em bolhas porque não queremos nos relacionar com o diferente.

Há ainda de se levar em conta que vivemos uma hegemonia do dinheiro. O capitalismo que é por natureza acumulador, está matando a humanidade! Tudo gira em torno do dinheiro, do consumo e do acúmulo. Chegamos ao homo sapiens demens, mas com a inteligência a serviço da loucura. Loucuras como a bomba atômica, frutos da inteligência provam isso.

É a ideia de identificar a mudança do período holoceno para o antropoceno. Segundo as eras geológicas, o período holoceno é quando a terra está em equilíbrio e em condições propícias para uma verdadeira erupção de vida e surgimento das espécies. O foco agora, entretanto, está no ser humano, tudo se volta a ele, por isso antropoceno.

O Papa Francisco, ao assumir esse nome fez uma escolha. E em sua primeira homilia deixou claro os valores de seu pontificado, totalmente em sintonia com Francisco de Assis: ele apresentou o desejo de uma Igreja pobre com os pobres, voltada para a Paz e comprometida com o cuidado da criação.

Essa sensibilidade pastoral que precisamos ao olharmos para o mundo. O Evangelho de João apresenta o mundo como o que o odeia. Esse mundo tem um príncipe. Por isso Jesus diz “meu reino não é desse mundo”. Mas também lembra que “Deus amou tanto o mundo, que entregou seu Filho para a salvação do mundo…” Também diz Jesus que “não vim para julgar o mundo”. Nesses casos, não fala de outro mundo, mas sim do mundo. Esse mundo. Aqui, onde estamos, aqui é nosso lugar de convento (encontro, congresso, vida).


Confira o resumo do 1º dia do Capítulo Provincial

 


RELACIONAR-SE COM A DIGNIDADE DA CRIAÇÃO

Ao ser lançado o filme “Irmão Sol Irmã Lua”, vimos um romantismo franciscano meio que tomar conta. São Francisco foi declarado padroeiro dos ambientalistas e protetor dos animais. E os frades começaram a dar bênção dos animais. Ou, mais frequentemente, bênção dos pets. Há, de certa forma, uma espiritualidade no reconhecer que diferença pela convivência. Há algo diferente nos animais de companhia e com os que damos nomes. Os filhos de São Francisco são chamados a dialogar com as diferentes tentativas de se relacionar com a dignidade da criação.

Uma espiritualidade antiga judaica, por exemplo, que aparece no sermão da montanha e depois se manifesta nas práticas de oração, esmola e jejum, reconhece na oração a atitude de voltar a boca ao Senhor, abrir a boca em direção a Deus… o pão que viria a encher essa boca é deslocado para o que mais precisa, e isso faz parte do voltar-se a Deus. Por isso, nossa espiritualidade propõe um aprofundar-se no despojamento.

Trata-se de desapropriação. Essa é a nossa loucura evangélica! Desapropriar onde a apropriação é o critério. Inclusive, é até possível falar ao invés de antropoceno, em período capitaloceno, onde a lógica da apropriação está no centro. Estamos extraindo de nossa casa comum muito mais do que ela pode regenerar e oferecer, e isso é grave.

É preciso também, nessa lógica, passar do apego ao desapego! Embora o apego também seja criar laços e vínculos, não devem ser de posse, antes de troca! Criar apego também é fundamental para a criança em seu processo de humanização, mas é um processo com consequências.  São Paulo nos fala que queria nos poupar porque os amores vão terminar em luto! Realmente há um processo de luto envolvido e necessário na dinâmica da vida, dos vínculos e laços.

São Francisco de Assis precisou passar por um profundo luto. Quando ele percebe que tentou viver o sonho de seu pai burguês e comerciante, depois tentou se realizar buscando títulos na guerra: passa por um processo de luto, chora com vergonha de si.

Nas suas exortações aparece esse processo quando ele enfatiza o “sine proprio” como maturidade dessa experiência. Historicamente foram várias as interpretações do sine proprio que aparece na regra franciscana, professada por todos os frades. Desde entender como propriedade e transferir todos os bens ao papado, sendo os frades como filhos que usufruem dos bens dos pais, até o questionamento do próprio uso, buscando um “uso pobre” de todas as coisas. Parece, entretanto, que essas discussões são por demais externas. Nas exortações, São Francisco fala na renúncia em fazer juízo do outro! Fazer juízo seria um apropriar-se do outro! O voto, não de pobreza, mas de viver sine proprio, é traduzido como desapropriação! E isso é um processo de luto!

Vamos ver alguns dados biográficos de Francisco. Alguns escritores o descrevem na juventude com vestes esvoaçantes e adepto de comidas delicadas. Por isso, sua forma de viver pobre era colocar remendo por fora das roupas (por dentro não aparecia, e todos colocavam), e comer com cinzas na comida. Era sua forma de desapropriar-se de seus desejos, daquilo que antes lhe eram tão valiosos. Um processo de luto, portanto.

Por isso que imitar Francisco hoje não significa colocar remendos nas roupas e cinza na comida. Isso eram partes de sua biografia. O pai de Francisco queria fazer dele o homem que não conseguiu ser, por isso lhe inflava o ego. Era importante Francisco desconstruir isso, desapropriar-se e viver o luto! Por isso sua radicalidade! Que é inspiradora, mas que não conseguimos imitar… Tanto que Francisco precisou criar algo novo como forma de vida. Ele tentou os modelos de então, mas não se encontrou, seu processo era outro. Também por isso ele exorta a usar palavras breves nas pregações, porque não é o encanto da oratória que evangeliza, mas sim o testemunho.

Nossas famílias, por vezes, já são piedosas e religiosas. Nossa conversão não é repentina, talvez por isso também é algo continuado. É aqui que entra o valor da provação no processo.

O primeiro ano de vida franciscana é chamado de tempo da provação. Francisco acolhia novos frades e eram condições para essa prova deixar o que se tem (se não se tem nada, basta o bom propósito, a vontade de deixar), e ir servir os leprosos, doentes, excluídos. Junto com essa iniciação vinha o assumir a identidade franciscana, e isso se dá pela minoridade: fazer-se menor, abaixar-se. Historicamente, ao se fechar em conventos, perdemos o critério da sociedade, da solidariedade com os pobres nesse processo. Passou-se a discutir o tema da pobreza e da minoridade de modo teórico, e a estabelecer critérios externos, secundários.

O jovem frade que vai trabalhar em uma favela ou comunidade, por exemplo, e se preocupa em ir de chinelo de dedo e roupas simples, para não parecer de fora. Não é isso que importa. Clodovis Boff, ao falar da opção pelos pobres, apresenta a necessidade de esta ser por uma dialética: é preciso atravessar a sociedade carregando a voz, a causa, as demandas dos mais pobres! Para isso precisamos entender a complexidade das mediações. Desprezar as mediações é algo como tentar a Deus. Não só é possível, como muitas vezes a estrada mais frutuosa é fazer uso dos caminhos possíveis em favor da dignidade dos mais pobres.

Critério é também o modo de se fazer as coisas. No tempo de Francisco, a proibição de andar a cavalo e de possuir animais tinha um sentido prático. Hoje, como chegaríamos na África andando a pé ou mesmo de navio? Claro que o melhor é o avião… mas não é necessário ir de primeira classe. É claro que o padre precisa usar um carro para seu trabalho, mas não precisa ser um carro de luxo. Francisco apresenta o critério, ele pode tratar as coisas como irmãs justamente por não tratar os irmãos como coisas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem alguns antecedentes, outros manifestos muitas vezes inspirados nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Num processo de laicização – porque Fraternidade ainda era muito próxima dos valores cristãos –, o positivismo vai trocar Fraternidade por Humanidade. Isso aparece ainda na tensão que há entre liberdade e fraternidade, seja no Brasil ou em vários outros lugares, às vezes até mais marcados que aqui. Um exemplo é a questão da resistência com relação à vacina, alegando um princípio de liberdade para não se vacinar. Claramente é o conflito entre essa compreensão de liberdade, e o princípio de solidariedade com o outro.

O artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos começa com liberdade e termina na fraternidade: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de ração e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

Hoje há uma crise de fundamentação para as relações. Quando dizíamos que todos somos “filhos de Adão e Eva”, por isso devíamos nos tratar bem, isso funcionava. Outra tentativa era dizer: “Somos todos cristãos”, disso advinha do preceito de não agredir fulano, porque ele também era cristão. Em um tempo de cristandade, claro. Depois do evolucionismo, isso cada vez mais se torna não um critério, Adão e Eva são compreendidos como uma narrativa de sentido, mas que não gera sentido para um chinês, por exemplo. Há sempre o processo de sacralizar e dessacralizar. Nas guerras santas, dessacralizava-se o outro para poder matar: o muçulmano não era chamado de homem, mas de cão pelos cruzados (e vice-versa). Sacralizar aquilo pelo que vale a pena morrer também: nosso hino nacional fala em morrer pela pátria.

O Papa Francisco, na Fratelli Tutti, quer superar até mesmo a individualidade da expressão de fé, em prol de uma fraternidade universal.

No contexto bíblico, vemos na história de Caim e Abel a tragédia, ou o fracasso da fraternidade. E ali está a origem do pecado. A doutrina do Pecado Original tem um papel interessante no cristianismo. A formulação de Santo Agostinho o auxiliou a rebater a doutrina do maniqueísmo, desfazendo a proposta de duas forças antagônicas, Deus e o Mal, que lutam. O mal depende de mim, mas também não só de mim, há algo já no ser  humano, como que herdado.

O pelagianismo propunha que pelas próprias forças, o homem poderia resolver as coisas, mas não é assim, e a condição do pecado original ajuda a embasar. Ainda São Paulo sustenta na Carta aos Romanos a necessidade de Deus para superação do pecado, embora seguindo a narrativa de Adão e Eva como início (Cf. Rm 5) e afirma com todas as letras que todos pecaram e precisam de Graça para redenção (Cf. Rm 3, 23-25). Para superar a teologia do bode expiatório e a prática de colocar a culpa em alguém, precisamos todos juntos assumir que pecamos e pedir perdão. Cristo se apresenta não como bode expiatório, mas como cordeiro sem mancha que se deixa conduzir.

O relato de Adão e Eva apresenta uma alegoria de como a humanidade só amadurece com a provação. Era preciso abandonar o paraíso infantil para se tornar adulto e assumir o outro lado da vida: trabalho, sofrimento, morte. Adão alcança sua condição e Eva é ainda mediadora. Mas há a transgressão. E aqui vem a pergunta: toda transgressão é pecado? Por exemplo um filho que aos 30 anos ainda pede permissão para a mãe para sair com amigos e beber uma cerveja. Nesse caso é necessário que chegue o dia em que ele simplesmente vá. Em certo sentido, foi o fruto proibido que fez com que Adão e Eva se tornassem como nós! Se tornassem de fato imagem e semelhança de Deus, porém como deuses finitos. Mas isso precisa acontecer no companheirismo de Deus, e não contra Deus!

Ocorre então o salto para a consciência… consciência e liberdade são condições para pecar, sem isso não há culpa. O fruto proibido traz a possibilidade de pecar, que antes não existia, como no estágio infantil em que a criança não tem consciência de suas ações, e, portanto, não pode ter imputada culpa.

Caim, nesse sentido, foi advertido por Deus quando fechou os olhos para a oferta de seu irmão Abel e ressentiu-se da preferência do Senhor por Abel. Era como se ele perdesse o privilégio de filho único. Caim que na verdade é, de certo modo, primogênito da humanidade, já que Adão e Eva foram criados, mas não cresceram, já eram adultos. Caim representa a força de Deus, força do primogênito e Abel representa a fragilidade. No entanto, Abel se tornou uma provação para Caim!

Abel ser o preferido de Deus se torna a provação da Fraternidade! E Caim não passa na prova! Esse seria, de fato, com consciência e liberdade, o primeiro pecado. Não porque ofendeu ao alto de modo vago e abstrato (fruto proibido), mas porque usou o poder de Deus (Caim era o mais forte) para pisar no que estava abaixo (mais frágil). Usar a força recebida de Deus para esmagar o outro! Isso sim é pecado!

O Gênesis então vai mostrar como a descendência de Caim vai aumentando e multiplicando o fracasso (e o pecado) de Caim: ele é tido como fundador das cidades mais sanguinárias e violentas.

Depois vemos que Abraão também é provado. No relato do sacrifício de Isaac, seu filho, Abraão recebe duas ordens: a primeira revestida de sacralidade, em tom cerimonial, de tomar seu filho único, preparar o altar e oferecer em holocausto ao seu Senhor, e em troca ele receberia toda a Promessa. E a segunda ordem foi mais simples: “não faças mal ao menino”: sem sacralidade, sem cerimônia. E Abraão, de certo modo, transgride a primeira ordem (que não obedece) para seguir a segunda.

Vemos ainda Esaú e Jacó – gêmeos que saem do ventre materno já brigando. Após a história dos subterfúgios para obter a bênção e os direitos da primogenitura, Jacó vê seu irmão que marcha contra ele com seu exército bem armado, e percebe que não tem o que fazer. Vai então, sozinho e desarmado em direção ao exército de seu irmão, e ao chegar perto, se abraçam chorando. O choro é necessário e importante na construção da fraternidade. Depois Jacó também terá seu preferido: José e Benjamim que foram gerados na velhice. Isso desagrada seus irmãos, José se torna a provação para seus irmãos, que arrumam um modo de se livrarem dele. Então eles fazem o que Caim fez. Só não o matam porque Rubem, o primogênito (aquele que está “no lugar do pai”) interfere. Mas ele é vendido como escravo. Quando José se reencontra com os irmãos, ele precisa chorar. O choro é necessário instrumento de superação. No processo de perdão, José diz aos irmãos que não foram eles que o fizeram parar no Egito, mas sim fora o próprio Deus! Ele mesmo perdoa e dá sentido à narrativa. É necessária mesmo a didática do Perdão!

Assim como não há Eucaristia sem Ato Penitencial, é necessário reconhecer-se pecador e pedir perdão. Hannah Arendt apresenta uma definição de perdão muito válida, quando confrontada com a pergunta de como seria possível para os que o sofreram, perdoar os causadores do holocausto. Como não buscar vingança ou reparação? O próprio sistema judiciário é pautado em garantir alguma espécie de vingança ou compensação, para que não fuja do controle, mas o sistema é esse, de vingança no fundo. Por isso, Hannah Arendt apresenta o perdão não como um sentimento, mas como uma promessa: a promessa de que no futuro não se vai cobrar o erro do passado!

O filósofo Emanuel Levinas chama a atenção para a banalização do perdão quando acontece sem uma pedagogia. Ele criticava o perdão cristão por ser abrangente e fácil demais. Dizia que era possível perdoar os alemães pelo holocausto, mas impossível perdoar Heidegger, pois Heidegger era um gênio.

A Fraternidade, portanto, não é algo dado, garantido ou natural. É algo que se cria, que se constrói. É a vivência da Fraternidade Escatológica que se concretiza sim, mas pelas nossas ações e decisões.

A UNIVERSALIDADE DA FRATERNIDADE

Alguns franciscanólogos reconhecem no século XIX um momento em que São Francisco foi, de certo modo, “sequestrado” pelo romantismo para fazer frente ao racionalismo do Iluminismo. Essa ideia de um São Francisco dos passarinhos e não muito atuante. Voltaire vai inclusive criticar a apresentação de um São Francisco de braços abertos, cantando e que depois vai pedir esmola. Ele diz que seria melhor ir trabalhar então. Claramente não conhece a espiritualidade de São Francisco, nem suas escolhas, critica justamente essa imagem da romantização.

Eça de Queirós tem um conto muito interessante sobre o julgamento de Junípero: estaria Frei Junípero às portas do céu para seu julgamento, e Deus elencaria suas virtudes, seus atos de misericórdia e vida de oração. Quando quase Junípero estaria entrando no céu, chega o porco para o acusar. Sabemos a estória que um confrade estava doente e Junípero foi até o vizinho e “pegou” a pata de um porco para fazer uma sopa para o doente – apenas a pata do porco, deixou o resto lá. Agora, o porco sem a pata estava no seu julgamento. Quando o dono do porco veio reclamar com o guardião – vemos aqui a espontaneidade franciscana, em Junípero, e já a instituição, no guardião – este gritou tanto com Junípero que ficou sem voz. Junípero, então, aumentou o caldo da sopa e ofereceu ao guardião, para que recuperasse as forças. Como esse gritasse ainda mais alto que não tomaria a sopa para não fazer parte do roubo, Junípero pergunta então se o guardião poderia segurar a vela, que ele mesmo tomaria a sopa. Isso está nos Fioretti de São Francisco.

Em Junípero a desapropriação é tão presente, que ele perde a consciência de propriedade – sua e dos outros. Fazer juízo sobre a propriedade já é propriedade. E por isso, no conto de Eça de Queirós, Junípero é mandado para o último lugar do purgatório.

Quando Francisco faz o elogio das virtudes, reconhece que quem tem uma tem todas. E quando fala da obediência, explica que se trata de obediência a todos, não apenas ao superior, mas aos irmãos, e até às criaturas irracionais e às feras. Estar na obediência e submeter-se até quando ao Senhor aprouver. No episódio do Lobo de Gubbio, os moradores chamam Francisco porque não sabem o que fazer. Francisco consegue fazer um pacto entre o lobo (que não mais atacaria os rebanhos nem as pessoas) e a cidade (que o alimentaria e acolheria). Tanto que quando o lobo morre, a cidade chora. Isso só é possível porque Francisco está na dinâmica da desapropriação! Só assim ele é capaz de exercer o ofício de mediador, pois para isso não pode haver interesses! Francisco não tem conflito com ninguém, quem tem conflito são o lobo e a cidade, e disso Francisco não toma partido, respeita os dois, não tem juízo sobre eles, que já seria apropriação.

O Papa Francisco, na Fratelli Tutti, inspira a Religião a estar a serviço da Fraternidade Universal. Mas só podemos pedir que o outro coloque sua religião a serviço da Fraternidade quando nós já estamos dispostos. Por isso, Hans Küng diz que só haverá paz no mundo quando houver paz entre as religiões. Isso porque a religião não gera necessariamente a violência, mas a violência quer ser sacralizada para continuar. Para matar, morrer, mandar matar, mandar morrer é preciso criar uma justificativa. Isso era feito por doutores da Igreja e santos, nas pregações pelas cruzadas, onde se proclamava que quem matasse um mouro faria um favor a Cristo. Da mesma forma entre os exércitos dos muçulmanos havia a promessa de recompensas no céu para a morte dos cristãos.

As religiões costumam se organizar sob quatro fatores: rituais, mandamentos, doutrinas e hierarquia (não necessariamente vertical, mas modelos de organização). O fechamento nesses fatores gera os vícios: ritualismo, fundamentalismo etc. Religião precisa estar para além, para a Fraternidade Universal! Jesus transcende esse formalismo nas disputas com os mestres da lei e fariseus – na questão do sábado quando ele realizava curas, na superação da compreensão preconceituosa de pureza etc.). Paulo também aponta isso quando denuncia que a letra mata e o espírito vivifica. O próprio Papa Francisco insiste em transcendermos a própria religião pela Fraternidade Universal. Estar disposto ao diálogo.

E isso o franciscano devia fazer com facilidade. Os filhos de São Francisco aprendem a espontaneidade e a liberdade da sensibilidade. Talvez seja isso que caracterize a escola franciscana de pensamento. Os textos diferem, as abordagem são próprias, mas há um sensibilidade comum: confiança no Espírito; desapropriação, que será chamada simplicidade franciscana… A missão da Fraternidade Universal é ir além das paredes da religião instituída! Sermos católicos significa isso, a universalidade da Fraternidade. Nossa Religião nos abre aos outros, não nos separa! Isso é não se apropriar da realidade e colocá-la a serviço de uma religião, mas sim  colocar a Religião a serviço!


Equipe de Comunicação do CapítuloFrei Augusto Gabriel, Frei Clauzemir Makximovitz, Frei Gabriel Dellandrea, Frei Alan Leal de Mattos e Moacir Beggo.

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