Bancada católica quis instrumentalizar ideologicamente a figura mariana numa suposta cruzada contra o comunismo e favorecer a imagem do atual governo.
Por Felipe Magalhães Francisco
Olhei com bastante crítica o ato desesperado do presidente da república (sim, em minúsculas, insisto!) em sinalizar à ala conservadora católica, logo após a eleição da nova presidência da CNBB e da derradeira e contundente carta desta instituição ao povo brasileiro, com uma pretensa consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria. O presidente, apesar de toda a sua inépcia, é bem assessorado (não a favor do Brasil, claro!). O gesto, bastante significativo para os tradicionalistas, mexe também com a sensibilidade dos católicos e católicas em geral, afinal, tudo o que é referência positiva à Nossa Senhora, é visto com bom grado.
Estamos num dos países mais sincretistas do mundo, quiçá o maior! Sincretismo, no entanto, como uma força viva que cria e mescla elementos religiosos de tradições de fé distintos, mas que não se confunde com a promiscuidade religiosa do presidente da república. O que ele faz é jogar com interesses religiosos radicais para tirar proveito para si próprio, em função do poder, mexendo com a sensibilidade das pessoas que não têm consciência religiosa crítica. Vivemos tempos tão absurdos, que grupos religiosos exclusivistas – e, portanto, diametralmente opostos – têm se colocado do mesmo lado, em nome de um conservadorismo medíocre e hipócrita, no que diz respeito aos costumes, e que tem acabado por nos levar ao fundo do poço. Religiosos neopentecostais tão afoitos em esbravejar contra tudo aquilo que abominam, curiosamente, permaneceram silentes ante o ato do presidente em consagrar o país ao Imaculado Coração de Maria.
Parece que os conselhos de Romero Jucá e Sérgio Machado pegaram: que o Brasil vive, entre as elites, de acordões, já sabíamos. Agora, há um grande acordo entre tradicionalistas católicos e neopentecostais radicais, em torno da agenda (a)política. Pessoas que se confessam cristãs, relativizando o elogio à tortura, compactuando com concepções que veem nas armas a solução para muitos dos problemas, e regozijando com o desprezo das políticas públicas em favor das minorias. Tudo em nome de quê, afinal? Tempos perigosos para viver, de maneira verdadeira, o cristianismo!
Compomos um país com uma diversidade religiosa impressionante e maravilhosa. Eis uma de nossas maiores riquezas culturais! O levante de um cristianismo fundamentalista é uma nova cruzada, também contra essa diversidade. Há uma agenda neopentecostal, escancarada, de cunho proselitista que quer dominar todas as esferas sociais e de poder. Já em relação aos tradicionalistas católicos é bem difícil saber o que pretendem, além de viverem uma Igreja fechada em si mesma e toda autorreferenciada e uma sociedade adoecida que não consegue avançar. Juntas, essas duas forças são suporte fundamental para a mediocridade nociva (um paradoxo, talvez?) do atual governo. Um ato confessional, nas ambiências de um governo que deveria garantir a laicidade do Estado, em virtude da proteção de todas as fés, é inadmissível. Sobretudo quando esse uso é absolutamente ideológico e instrumentalizado, como todos bem sabem que é justamente disso que se tratou.
Mas, ao fim e ao cabo, parece que a consagração do país ao Imaculado Coração de Maria deu certo. Como sempre, o Deus de Jesus é o Deus que é do lado dos pobres, tal como Maria, mãe e discípula de Jesus e crente nesse mesmo Deus. Os que queriam instrumentalizar ideologicamente a figura mariana, numa cruzada inútil e imbecil contra o comunismo que só existe na fantasia de alguns, esqueceram-se, de que esta Maria é a que cantou o olhar generoso de Deus para com os empobrecidos e empobrecidas da história, e no rechaço para com os poderosos que vivem da injustiça. Na última semana, o STF, em julgamento não concluído, mas já com ganho de causa, garantiu a criminalização da homofobia. Para mim, homem de fé e pretenso seguidor do Evangelho de Jesus, enxergo com bons olhos tal ação e leio na perspectiva do cuidado da Mãe Maria, a Senhora dos frágeis e pequenos. Se a consagração à Virgem continuar trazendo bons frutos assim, venceremos bem a desgraça que nos assola!
Felipe Magalhães Francisco é teólogo e articula a Editoria de Religião do portal Dom Total.