“Não há nada mais belo do que sermos alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada mais belo do que conhecê-Lo e compartilhar nossa amizade com Ele com os outros. (Trecho da homília de Bento XVI ao iniciar seu pontificado, 2005).
O Senhor vos dê a Paz.
No âmbito das celebrações dos Jubileus Franciscanos, o ano de 2025 recorda os oitocentos anos do Cântico das Criaturas, motivação perfeita para reforçar a relevância da arte, da poesia e da beleza na tradição franciscana. São dignos de cumprimentos e incentivos os confrades que se dedicam à pintura, à escultura, à música, à literatura, à poesia e às mais diferentes manifestações artísticas. Nossa fraternidade, inclusive, é muito grata e feliz por contar com prestimosos irmãos que, com “inspiração e transpiração”, expressam através da arte o itinerário a ser percorrido por todas as criaturas que carregam em si o desejo de plenitude. Entretanto, devemos considerar que o convite a trilhar o “Caminho da Beleza” não se restringe àqueles confrades que, desenvolvendo habilidades individuais, nos brindam com diversificada produção artística. Nalguma medida, cada irmão e todas as fraternidades são convidadas a conhecer e percorrer esta via. Pois assim se diz do “Caminho da Beleza”: “Começando com a experiência simples do encontro maravilhoso com a beleza, a Via Pulchritudinis pode abrir o caminho para a busca de Deus, e dispõe o coração e o espírito para encontrar Cristo, que é a beleza da santidade encarnada, oferecida por Deus aos homens para a salvação deles”. Além disso, “O Caminho da Beleza” parece ser um itinerário privilegiado para entrar em contato com muitos daqueles que enfrentam grandes dificuldades em receber os ensinamentos da Igreja” (Documento final da Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, realizada nos dias 27 e 28 de março de 2006).
A arte como caminho
Tem raízes longevas a atenção da Igreja Católica para com a Via da Beleza. Não precisaríamos mencionar a contratação de artistas que se dedicaram a traduzir as virtudes celestiais em imagens pintadas ou extraídas dos mármores que, até hoje, adornam templos mundo afora. Os vitrais e toda arquitetura das igrejas medievais, a estupenda criação literária em todas as épocas, sustentaram e ainda motivam a pregação e a catequese católicas. Compositores, músicos e instrumentistas ofereceram seus dons para trazer aos ouvidos humanos os sons e canções que proporcionam alento e despertam na alma o desejo das coisas do céu. Incontáveis são os artistas anônimos que, nos ambientes de culto e também fora dele, dão formas à sua compreensão de Deus e seu relacionamento com o ser humano e as criaturas todas.
A perspectiva franciscana
Quando o assunto é a “Via da Beleza”, com facilidade se recorda o jeito cortês e cuidadoso de Francisco de Assis, quer na sua juventude entre os amigos nos jogos e festas, quer na expressão que ele próprio usa para sintetizar a sua descoberta e identificação com a vida de penitência: “o amargo se mudou em doçura”. Doçura é expressão vivencial da beleza profundamente desejada por Francisco. É impressionante a capacidade do “Cantor do Irmão Sol”, o mais pobre entre os pobres, o mais penitente entre os penitentes, experimentar, acolher, tocar, beijar a doçura até mesmo nas situações mais penosas que enfrentou.
De Francisco se diz que, nalguns momentos, escolhia expressar-se em Francês, a língua que aprendera com sua mãe. Assim registrou a Compilação de Assis, n.38: “De vez em quando fazia estas coisas. Fervendo interiormente pela dulcíssima melodia do espírito, soltava exteriormente a voz em francês, e a veia do divino sussurro, que recebia furtivamente nos ouvidos, transbordava em júbilo francês”. E a continuação do texto registra uma outra atitude que nos encanta: “Algumas vezes, como vi com meus olhos, pegava um pau do chão, colocando-o em cima do braço esquerdo e segurando um arquinho na direita, passando-o pela madeira como se fosse uma viola e, fazendo os gestos adequados, cantava a Deus em francês. Todos esses tripúdios acabavam frequentemente em lágrimas, e o júbilo se dissolvia na compaixão pela paixão de Cristo. Por isso esse santo vivia suspirando, e com repetidos gemidos, esquecido do que trazia de inferior em suas mãos, elevava-se ao céu”.
A nós, franciscanos e franciscanas, surge como inquietante provocação e vigorosa inspiração o pedido que Francisco fez a um grupo de irmãos, já nos seus últimos dias nesta terra, que reunissem as autoridades de Assis, que viviam entre querelas e contendas, e cantassem diante delas os louvores ao Senhor que ele havia acabado de compor. Francisco se encontrava com o corpo corroído por doenças várias; àquelas alturas, era uma pessoa impossibilitada de olhar para a claridade do dia por conta da insuportável dor nos olhos; era alguém que experimentava os estertores da morte. O que poderia inspirar alguém nessas limítrofes situações a ciar uma poesia repleta de louvor, reconhecimento e gratidão? De onde poderia vir a corajosa inspiração e a lúcida convicção de que ao ouvir seus versos em canção os inimigos voltariam à amizade?
A motivação, conscientemente assumida por Francisco e que o fazia cantar em meio à desolação e assaltado por tantas dores, encontra atualidade neste nosso tempo. A resposta dada por ele há oitocentos anos pode se refletir nas palavras/convite que o Papa Paulo VI escreveu aos artistas no ano de 1965: “Este mundo em que vivemos precisa de beleza para não se afundar no desespero. Beleza, como a verdade, que traz alegria ao coração do homem e é esse fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e faz com que compartilhem as coisas com admiração”. Da mesma forma, podemos nos valer das palavras de Bento XVI que recorda, como mencionado acima, “não há nada mais belo do que sermos alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo”.
Francisco de Assis o “Cantor do Irmão Sol” com dois galhos, mudados em violino e arco, pelas estradas e vielas do seu tempo a entoar louvores ao Deus Altíssimo; Francisco que insistiu que seus irmãos cantassem anunciando a grandeza e a beleza da paz e do perdão diante das autoridades do seu tempo, é um homem que encontrou o caminho daqueles que não se deixam tragar pelo desespero. Na beleza do encontro surpreendente com o Senhor pobre, crucificado e ressuscitado, Francisco forjou sua tenacidade e construiu a casa sobre a rocha. Encontrado e encantado pelo vigor da mais pura beleza, ele pôde dizer, com todas as forças do seu ser: “isso que quero, procuro e desejo de todo o coração”.
O Caminho da Beleza nos nossos dias
A inspiração do Papa Francisco pode servir de ponto de partida para a promoção da Via Pulchritudinis como plataforma de anúncio do Evangelho aos nossos dias. Na Laudato si’ o Papa insistia que somos chamados a reapresentar à sociedade contemporânea a “linguagem da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo” (Laudato si´11). Antes, na Evangelii gaudium, ele realçava a importância da “Via da Beleza” para o anúncio do Evangelho e convidava aos agentes da evangelização que apostassem nas artes: “É bom que toda a catequese preste uma especial atenção à Via Pulchritudinis, afinal, anunciar Cristo significa mostrar que crer nele e segui-lo não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações”.
Uma das últimas mensagens do Papa Francisco foi dirigida aos artistas e agentes de cultura. Por ocasião do “Jubileu dos Artistas”, ocorrido em fevereiro deste ano (2025) ele afirmou: “artista é aquele ou aquela que tem a função de ajudar a humanidade a não se desnortear, a não perder o horizonte da esperança”. Para o Papa Francisco os artistas são “guardiães da beleza que sabem inclinar-se sobre as feridas do mundo, que sabem escutar o grito dos pobres, dos sofredores, dos feridos, dos presos, dos perseguidos, dos refugiados. O Papa ainda lembrou: “vivemos num tempo em que se erguem novos muros, em que as diferenças se tornam um pretexto para a divisão em vez de serem uma oportunidade de enriquecimento recíproco. Mas vós, homens e mulheres da arte e da cultura, sois chamados a construir pontes, a criar espaços de encontro e diálogo, a iluminar as mentes e a aquecer os corações”.
A Solenidade de São Francisco de Assis deste ano, ampliada pela celebração dos oitocentos anos do “Cântico das Criaturas”, revigore a disposição de todos para que sejam criativos nossos passos no caminho que conduz ao encontro da beleza infinita do amor de Deus. A opções e o exemplo do “Cantor do Irmão Sol” devolvam a todos os corações o alento da poesia e do canto; a proposta de vida de Francisco, Clara e dos primeiros companheiros e companheiras traga de volta para morar novamente entre nós a leveza da dança e do encanto. Livres e leves, desapegados e pobres, possamos correr pela escarpada montanha e desposar a mais bela de todas as damas.
Boas Festas.
Viva São Francisco.
Paz e Bem.
Frei Paulo Roberto Pereira, OFM – Ministro provincial