“Pastores e testemunhas, armados apenas de oração e caridade, que docilmente se deixam surpreender pela graça de Deus e se tornam instrumentos de salvação para os outros”. Estas são as palavras do Papa no discurso aos bispos, sacerdotes, diáconos, consagrados e consagradas, e seminaristas em Juba, no Sudão do Sul na manhã deste sábado, 4 de fevereiro.
O primeiro compromisso do Papa Francisco na manhã deste sábado (04/02) em Juba, foi o encontro com os bispos, os sacerdotes, os diáconos, os consagrados e as consagradas e seminaristas na Catedral de Santa Teresa.
Após os agradecimentos Francisco recordou que no discurso às autoridades feito no dia anterior, buscou inspiração no curso das águas do Nilo. “Agora”, disse o Papa, “quero olhar de novo para as águas do Nilo mas numa perspectiva bíblica. Por um lado, no leito deste curso de água, vertem-se as lágrimas dum povo imerso no sofrimento e na dor, torturado pela violência; mas, por outro lado, as águas do grande rio fazem-nos lembrar a história de Moisés e, por isso, são sinal de libertação e salvação. Na verdade”, continuou, “Moisés foi salvo daquelas águas e, conduzindo o seu povo pelo meio do Mar Vermelho, tornou-se instrumento de libertação, ícone do socorro de Deus que vê a aflição dos seus filhos, ouve o seu clamor e desce para os libertar”. Seguindo seu discurso o Papa explicou:
“Tendo diante dos olhos a história de Moisés, que guiou o Povo de Deus através do deserto, perguntemo-nos que significa ser ministros de Deus numa história permeada pela guerra, o ódio, a violência e a pobreza”
Docilidade e Intercessão
Tentando responder, o Papa disse que iria se deter em duas atitudes de Moisés: a docilidade e a intercessão. “A primeira coisa que impressiona na história de Moisés é a sua docilidade à iniciativa de Deus”. Logo o Papa explica ainda que nem sempre foi assim. Um tempo tentara combater sozinho a injustiça e a opressão chegando ao ponto de decidir fazer justiça sozinho, matando um egípcio que estava a maltratar um judeu. Por isso teve que fugir permanecendo muitos anos no deserto. “Qual foi o erro de Moisés? Pensar que era ele o centro, contando apenas com as suas forças. Deste modo, porém, ficou prisioneiro dos piores métodos humanos, como aquele de responder à violência com a violência”.
“Algo semelhante pode acontecer às vezes também na nossa vida de sacerdotes, diáconos, religiosos e seminaristas: no fundo, pensamos que somos nós o centro, que podemos confiar-nos – se não na teoria, pelo menos na prática – quase exclusivamente à nossa perícia”. E esclarece
“A nossa obra vem de Deus: Ele é o Senhor e nós somos chamados a ser instrumentos dóceis nas suas mãos”
“Moisés aprende isto quando, um dia, Deus vem ao seu encontro, aparecendo-lhe ‘numa chama de fogo, no meio da sarça’. Moisés deixa-se atrair, coloca-se numa atitude de docilidade deixando-se orientar pelo fascínio daquele fogo”.
A docilidade
“Vemos aqui a docilidade que serve para o nosso ministério: aproximar-se de Deus cheios de maravilha e humildade, deixar-se atrair e guiar por Ele; dar a primazia não a nós, mas a Deus, para nos confiarmos à sua Palavra em vez de nos servir das nossas palavras, para acolhermos docilmente a sua iniciativa em vez de apostar nos nossos projetos pessoais e eclesiais”.
“Este deixar-nos plasmar docilmente é que nos faz viver de maneira renovada o ministério”
“Então façamos como Moisés na presença de Deus: descalcemos as sandálias, com humilde respeito, despojemo-nos da nossa presunção humana, deixemo-nos atrair pelo Senhor e cultivemos o encontro com Ele na oração”.
Intercessão
“Purificado e iluminado pelo fogo divino, Moisés torna-se instrumento de salvação para o seu povo que sofre; a docilidade para com Deus torna-o capaz de interceder pelos irmãos. Aqui está a segunda atitude sobre a qual vos quero falar: a intercessão. Deus compassivo”, explicou o Papa “não fica indiferente ao clamor do seu povo, mas desce para o libertar.” Destacando o verbo: “descer”. “Deus vem para o meio de nós chegando ao ponto de assumir, em Jesus, a nossa carne, experimentar a nossa morte e descida à mansão dos mortos. Sempre desce para nos levantar”. Com efeito, continua Francisco: “interceder não significa simplesmente ‘rezar por alguém’, como muitas vezes pensamos. Etimologicamente significa ‘dar um passo para o meio’, dar um passo de modo a colocar-se no meio duma situação”, ou seja:
“Interceder é descer para se colocar no meio do povo, ‘fazer-se ponte’ que o liga a Deus”
E Francisco dirige-se aos presentes exortando: “Os pastores são chamados a desenvolver precisamente esta arte de ‘caminhar no meio’: no meio das tribulações e das lágrimas, no meio da fome de Deus e da sede de amor aos irmãos”. Nunca devemos exercer o nosso ministério visando o prestígio religioso e social, mas caminhando juntos no meio do povo; é colaborando entre nós, ministros, e com os leigos que se aprende a ouvir e dialogar. “Quero repetir aquela importante palavra”, acrescenta Francisco: “juntos. Bispos e padres, padres e diáconos, pastores e seminaristas, ministros ordenados e religiosos (nutrindo sempre respeito pela maravilhosa especificidade da vida religiosa):
“Procuremos entre nós vencer a tentação do individualismo, dos interesses parciais”
“Voltemos a Moisés! E, para aprofundar a arte da intercessão, ponhamos atenção nas suas mãos. A respeito delas, a Escritura oferece-nos três imagens: Moisés com a vara na mão, Moisés com as mãos estendidas, Moisés com as mãos erguidas para o céu”. “A primeira imagem, Moisés com o bastão na mão, diz-nos que ele intercede com a profecia”. E Francisco faz um apelo: “Irmãos e irmãs, para interceder a favor do nosso povo, também nós somos chamados a erguer a voz contra a injustiça e a prevaricação, que esmagam as pessoas e valem-se da violência para, à sombra dos conflitos, melhor gerir os próprios negócios”.
“Se queremos ser Pastores que intercedem, não podemos permanecer neutrais face ao sofrimento provocado pela injustiça e as violências, porque, onde quer que uma mulher ou um homem seja ferido nos seus direitos fundamentais, é ofendido Cristo”
A segunda imagem: “Moisés com as mãos estendidas”. As suas mãos estendidas são o sinal de que Deus está prestes a intervir”. “As suas mãos estendidas indicam a proximidade de Deus que está em ação e acompanha o seu povo. De fato, para libertar do mal, não basta a profecia, é preciso estender os braços para os irmãos e irmãs, apoiar o seu caminho”. “Também nós temos esta tarefa: estender as mãos, incitar os irmãos, recordar-lhes que Deus é fiel às suas promessas, exortá-los a prosseguir”.
“As nossas mãos foram ‘ungidas com o Espírito’ não só para os ritos sagrados, mas também para encorajar, ajudar, acompanhar as pessoas a sair daquilo que as paralisa, isola, assusta”
“Por fim, a terceira imagem: as mãos levantadas para o céu. Quando o povo cai no pecado e constrói um bezerro de ouro, Moisés volta a subir ao Monte – pensemos nesta grande paciência! – e pronuncia uma oração que é uma verdadeira luta com Deus para que não abandone Israel”. O Papa chama a atenção para o fato de que Moisés, “coloca-se da parte do povo até ao fim, levanta a mão em seu favor. Não pensa em salvar-se sozinho, não vende o povo em troca dos seus interesses!”. “Sustentar as lutas do povo com a oração diante de Deus, atrair o perdão, ministrar a reconciliação como canais da misericórdia de Deus que perdoa os pecados: é a nossa tarefa de intercessores!”.
Por fim o Papa conclui seu discurso afirmando: “Faço votos, queridos irmãos e irmãs, de que sejais sempre generosos Pastores e testemunhas, armados apenas de oração e caridade, que docilmente se deixam surpreender pela graça de Deus e se tornam instrumentos de salvação para os outros; profetas de proximidade que acompanham o povo, intercessores com os braços erguidos”.
Sudão do Sul: diante do Papa as histórias de duas religiosas assassinadas
No encontro de Francisco com os bispos, padres, diáconos, consagrados e seminaristas do jovem país africano, na catedral de Juba, a recordação de irmã Maria e irmã Regina, que foram mortas numa emboscada em meados de agosto de 2021, e o testemunho de um padre local: a Igreja aqui tem pouco, mas estamos próximos de nossos irmãos e irmãs.
Os sonhos de duas religiosas sul-sudanesas assassinadas em meados de agosto de 2021, enquanto voltavam do centenário da paróquia de Nossa Senhora da Assunção, de construir um albergue para financiar a educação de meninas resgatadas da violência da guerra civil, e uma clínica de obstetrícia em Juba, são lembrados por uma irmã diante do Papa Francisco. O da irmã Regina Achan é o segundo dos dois testemunhos levados ao Papa durante o encontro com os bispos, sacerdotes, diáconos, consagrados e consagradas e seminaristas do Sudão do Sul, na Catedral de Santa Teresa, em Juba. Diante dela, o padre Luka Hassan Arnu, da diocese de El Obeid, no Sudão, falou, elevando sua oração a Deus para que, graças à visita histórica de Francisco, “possa tocar o coração de todos os sudaneses e nos trazer uma paz duradoura”.
Duas religiosas e dois fiéis mortos em uma emboscada contra um ônibus
Irmã Mary Daniel Abut e irmã Regina Roba Luate, diz Irmã Achan, foram mortas em 16 de agosto de 2021 em uma emboscada por bandidos em seu ônibus, a 30 quilômetros de Juba, quando voltavam de Loa, a cidade da missão de fundação de sua Congregação, a do Sagrado Coração. Também morrem com elas Leon Zozimo e Taban Caesar, que estavam no mesmo ônibus atacado por bandidos. A Irmã Mary tinha quase 68 anos de idade e a Irmã Regina 67. Ambas nascidas no Sudão do Sul, “haviam encontrado sua vocação enquanto refugiadas em Uganda”, lembra a irmã Regina Achan. Juntas, elas haviam feito sua primeira profissão em 7 de janeiro de 1973 no convento de Moyo, Uganda, onde também fizeram seus votos perpétuos em 1º de janeiro de 1979. E celebraram juntas, em janeiro de 1998, o 25º aniversário de sua profissão religiosa em Cartum, Sudão.
Irmã Mary, um albergue e uma biblioteca a ser construída
Recordando a figura da irmã Mary Abut, a irmã Regina, que fala em nome das 218 religiosas professas do Sudão do Sul, assinala que ela tinha sido eleita Superiora Geral duas vezes, entre 2006 e 2018. “Como educadora, ela havia sido diretora da escola primária em Usratuna, Juba, e na época de sua morte residia na comunidade de Kator”. Em seus 12 anos como superiora geral, ela havia servido, com grande simplicidade, “como sacristã na Igreja de São Miguel, lavando, varrendo e limpando a igreja com a ajuda de apenas um assistente”. Seus sonhos para a congregação incluíam “a criação de um albergue como fonte de renda” para apoiar atividades como a educação de meninas resgatadas, “nossos orfanatos e sua administração”. O trabalho, explica a irmã Regina, “tinha começado mas ainda não foi concluído devido à falta de fundos”. A irmã Mary “também queria construir uma biblioteca para os alunos da escola primária Usratuna, em Juba”. Esperamos que tudo isso seja realizado em sua memória”.
A irmã Regina e o sonho de uma clínica de obstetrícia
A irmã Regina Roba, recorda depois a irmã Achan, que tinha se formado como enfermeira primeiro em Kampala, Uganda, e depois em Cartum, Sudão, e “havia trabalhado como enfermeira e agente de saúde em vários locais no Sudão do Sul”. No momento de seu falecimento, ela estava ensinando e treinando enfermeiras no Instituto Católico de Treinamento em Saúde, em Wau”. Seu sonho, diz ela, “era construir um centro de maternidade em Juba”. Esperamos, com a ajuda de bons samaritanos, construir uma clínica de obstetrícia em sua memória”. Em homenagem às irmãs, a Arquidiocese de Juba declarou o fechamento de todas as instituições eclesiásticas durante uma semana e celebrou missas diárias para elas. As irmãs foram enterradas no cemitério de Rejaf, ao sul de Juba.
Do Sudão padre Luka: um povo de Deus
O padre sudanês Luka Hassan Arnu, da diocese de El Obeid, que falou ao Papa antes da irmã Regina, recorda que ele veio a Juba junto com outros irmãos “para adorar o Senhor e celebrar a unidade do povo de Deus destes dois países irmãos”. E ele assegura a Francisco que no Sudão e no Sudão do Sul “apesar de viver com a guerra civil e todos os danos consequentes, a Igreja nunca deixou de desempenhar seu papel sacerdotal, profético e pastoral”. Através de suas instituições pastorais, sanitárias e educacionais, “a Igreja coordena e oferece serviços ao próximo, apesar dos recursos limitados”.
“Deus toque os corações para uma paz duradoura”
O padre Luka lembra os muitos desafios enfrentados pela Igreja dos dois países irmãos, unida em uma única conferência episcopal, a Scbc (Conferência dos Bispos Católicos Sudaneses), liderada pelo bispo de sua diocese, Dom Yunan Tombe Trille Kuku Andali. Ateísmo sistêmico, indiferença às práticas religiosas”, assinala o padre, “conflitos tribais e confrontos pela terra e outros recursos naturais, fome, serviços sociais deficientes devido à escassez de alimentos, preços altos, falta de trabalho e salários inadequados”. Tudo isso, frisou ele, “se deve à prolongada guerra civil e à relutância de nossos líderes políticos em trabalhar juntos pela paz”. E ele termina seu testemunho com uma oração ao Senhor, para que ele possa “com esta visita histórica, tocar os corações sudaneses e nos trazer uma paz duradoura”. E invocou a intercessão da Virgem Maria, Rainha da Paz, e de Santa Josefina Bakhita, que nasceu no oeste do Sudão e morreu em Schio, perto de Vicenza, Itália.
Fonte: Vatican News – Vatican Media | Jane Nogara e Alessandro Di Bussolo