Roma, 01 de agosto de 2024
Caras Irmãs, o Senhor vos dê a paz!
A memória da Mãe Santa Clara recai este ano no Oitavo Centenário dos Estigmas de São Francisco, ponto culminante do seu caminho de seguimento do Cristo pobre e crucificado. Durante muito tempo interroguei-me sobre o eco deste evento na vida de Francisco na experiência humana e espiritual de Clara. O cerne é a relação com o Senhor Jesus. Se para Francisco o misterioso encontro do Monte Alverne sinalizou um núcleo de fogo que o preparou para se tornar conforme a morte e ressurreição de Jesus Cristo no encontro com a «irmã morte», para Clara o encontro com o «seu» Senhor foi a razão de ser de toda a sua existência de mulher, vivida no sinal de pertença total a Ele.
Gostaria de oferecer-vos algumas reflexões que espero sejam úteis para o vosso per- curso carismático, inspirando-se também nos ensinamentos do Seráfico Doutor São Boaventura de Bagnoregio, cujo 750° aniversário de sua morte celebra-se neste ano.
- O contexto dos Estigmas em 1224
As fontes hagiográficas contam-nos que Francisco de Assis, depois de um período intenso e num momento de «grande tentação», retirou-se para o Monte Alverne para uma Quaresma de jejum e oração, como de costume. É precisamente neste contexto de silêncio e oração que ele recebe uma visita misteriosa. No Monte Alverne, o desejo profundo do Poverello de seguir Cristo e de se conformar totalmente com Ele se realiza no encontro com o Crucificado. «Seguir as pegadas» de Cristo atinge aqui o cume, sob o impulso do «fervor da caridade» que inflamava «o amigo do Esposo». Francisco, encontrando nas criaturas as pegadas do Amado, «fazia de todas as coisas para si uma escada pela qual pudesse subir para apreender Aquele que é inteiramente desejável»1. A citação de Ct 5,16 nos faz perceber a robustez de uma linguagem amorosa de cunho esponsal, tornando-se ainda mais evidente nesta outra passagem com a referência ao Ct. 1,12:
«Jesus Cristo crucificado, no qual ele desejava transformar-se totalmente por meio do excessivo incêndio de amor, morava permanentemente no íntimo de seu espírito como um ramalhete de mirra».
Este desejo foi realizado no dom dos Estigmas, pois «o verdadeiro amor de Cristo transformou o amante em sua própria imagem».
O encontro com o Amado torna-se um canto de louvor; portanto, Francisco, após o encontro com o Crucificado, compôs os Louvores a Deus Altíssimo, uma oração que brota de um coração apaixonado, inteiramente centrado no Tu divino: «Tu és santo, Senhor Deus único, que fazes maravilhas. Tu és forte, Tu és grande, Tu és altíssimo…».
O silêncio envolveu a vida de Clara e das suas irmãs e nele guardou o seguimento de Cristo, que ela reconheceu como o «pobre Crucificado» a ser servido «com ardente desejo»5. A oração de Clara alimentou-se desta «visão» interior, amadurecendo-a no louvor e na alegria da contemplação de Cristo, Esposo de quem decidiu segui-lo.
Podemos, então, dizer que Clara viveu ao longo de toda a sua vida o caminho de seguimento que moveu o Poverello a receber o dom dos Estigmas no encontro de dor e de amor com o Cristo pobre e glorioso. Foi aqui, acredito, que ela pôde experimentar uma sintonia única com a vivência de Francisco. É claro que esta correspondência permanece misteriosa e só podemos intuir algo a partir dos seus escritos.
Contudo, um fato permanece: depois dos Estigmas, Francisco viveu um longo período em S. Damião, certamente cuidado por ela e pelas suas irmãs. Conhecemos a discrição de ambos e, ao mesmo tempo, podemos imaginar que Clara foi tocada por algo do amor e da dor que o seu irmão vivia, e de que o canto às Criaturas, que surgiu naquele tempo, é um eco e um sinal indelével. Procuro, então, sintonizar-me com essas frequências, talvez pouco frequentadas, mas muito profundas.
- Seguir as pegadas de Cristo pobre e humilde e Esposo
O tema do seguimento nas pegadas de Cristo é central em Francisco e Clara, tanto que é reconhecido como núcleo fundante da nossa espiritualidade. Os acentos dos dois nesse aspecto são unitários e também diferentes. O testemunho de Bona di Guelfuccio, testemunha no processo de canonização de Clara, diz que «Francisco… sempre lhe pregava que se convertesse a Jesus Cristo». É uma «conversão» que indica a volta de toda a pessoa para alguém que atrai: é precisamente o Esposo. O chamado é seguir Cristo, o Esposo pobre, como recorda Clara a Inês:
«Desprezando o fausto de um reino da terra, dando pouco valor à proposta de um casamento imperial, tu te fizeste seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande humildade e do mais ardente amor, juntando-se aos passos daquele com quem mereceu unir-se em matrimônio».
Verdadeiramente seguir as pegadas do Cristo pobre leva a uma comunhão profunda, esponsal:
«Vejo que são a humildade, a força da fé e os braços da pobreza que a levaram a abraçar o tesouro incomparável, escondido no campo do mundo e dos corações humanos, com o qual compra-se aquele por quem tudo foi feito do nada».
O tema evangélico do tesouro no campo é abraçado por Inês com humildade, fé e pobreza, num movimento crescente de adesão Àquele que se confessa Senhor. Inês é convidada por Clara a se fortalecer «no santo serviço do pobre Crucificado…»: seguir os seus passos torna-se um serviço de amor, animado pelo desejo que move toda a pessoa de Inês, que por isso «mereceu ser chamada irmã, esposa e mãe do Filho do Pai Altíssimo e da gloriosa Virgem»10. A ressonância desses atributos é profunda e delineia um caminho cristão de discipulado e união com Cristo.
A resposta generosa de Inês permite a Clara exclamar com júbilo:
«Tenho a maior alegria e transbordo com a maior exultação no Senhor, ao poder firmemente constatar que tu completas maravilhosamente o que falta em mim e nas outras Irmãs para seguir os passos de Jesus Cristo pobre e humilde».
O seguimento é um dom e um compromisso que toca e enriquece a todos na fraternidade, porque o bem circula e nos faz crescer no amor e na comunhão vital com Cristo:
«Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente, assim tam- bém tu, seguindo seus passos, especialmente os da humildade e pobreza, sem dúvida alguma, poderás trazê-lo espiritualmente em um corpo casto e virginal».
Seguimento e pobreza se unem através de uma experiência esponsal de amor e comunhão com Aquele que «suportou por todos nós a paixão da cruz».
O traço primorosamente nupcial da união amorosa com o Senhor Jesus, que permeia o pensamento e as cartas de Clara, já está explicitado na primeira carta a Inês, com a garantia, feita a ela e a todas as irmãs presentes e futuras, de que o Esposo divino, o Senhor Jesus – o esposo absolutamente mais nobre que qualquer outro – «guardará vossa virgindade sempre imaculada e intacta. Amando-o, sois casta; tocando-o, tornar- vos-ei mais pura; acolhendo-o, sois virgem».
A referência ao ofício da virgem e mártir Santa Inês ressoa nestas palavras. Num dos dois sermões dedicados por Boaventura a esta santa emerge o mesmo elogio dirigido por Clara a Inês: a mártir, com efeito, preferiu às núpcias terrenas aquelas com o Senhor. Assim fazendo, mostrou toda a sua beleza virginal, elogiada com as palavras do Ct 4,7:
«És toda bela, minha querida, e em ti não há defeito algum. A segunda parte explica a primeira; como ela era sem defeito, por isso foi querida. […] Quem é casto na carne, no coração, na imaginação e na conduta externa é inteiramente puro. Uma grande virtude é a castidade. O esposo eterno não pode amar outra coisa senão a alma casta. Não sem razão os Serafins gritam: Santo, santo, santo. Eles não gritam: «grande», «sábio» ou «justo». Por que os Serafins gritam santo, santo em vez dos outros anjos? Dionísio diz que santo é o mesmo que puro”. E o sermão termina com uma frase muito incisiva: «A união de Cristo e Inês é a união do esposo e da esposa».
A contemplação assídua do mistério da cruz transforma-se no abraço amoroso com o Amado Crucificado, que leva a uma imersão cada vez mais profunda nas suas chagas salvíficas, no seu coração trespassado pelo amor e por amor. Nesse sentido, é instrutivo um trecho do opúsculo espiritual De perfectione vitae – Ad sorores, no qual Boaventura exorta a alma piedosa a não se contentar com um contato apenas superficial com as chagas do Salvador e lhe diz:
«entra inteiramente pela porta do lado até o coração do próprio Jesus, ali transfor-mada em Cristo pelo amor ardentíssimo ao Crucificado, pregada pelos cravos do temor divino, perfurada pela lança de uma devoção cordialíssima, trespassada pela espada de íntima compaixão, não procure mais nada, não deseje mais nada, não peça nenhum outro consolo senão morrer na cruz com Cristo. Agora exclama com as palavras do apóstolo Paulo: Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim».
Na especificidade dos respectivos caminhos, Francisco e Clara colocaram no centro «seguir as pegadas» de Cristo, vivendo sem nada de próprio, em vista da união com o Amor Crucificado, Esposo da Igreja e da humanidade redimida: eis aqui também iluminado o valor eclesial da vocação de Clara.
Parece-me que aqui podemos encontrar, num olhar contemplativo prolongado, o ponto de contato entre o mistério dos Estigmas de Francisco e o caminho de Clara.
- Clara apoia Francisco
Na nossa igreja paroquial de Hong Kong pude ver um vitral representando Clara sustentando o estigmatizado Francisco, quase como Maria recebendo o corpo de Cristo crucificado na «Pietà». Esta imagem me questionou sobre o eco deste acontecimento na vida de Francisco, na de Clara e na sua experiência espiritual.
Vejamos como Clara reconheceu o chamado a tornar-se «colaboradora do próprio Deus e aquela que sustenta os membros vacilantes de seu corpo inefável»17.
Gosto de pensar que Clara viveu esta dimensão com Francisco, debilitado pelos sinais misteriosos impressos no seu corpo frágil. Ouso pensar que a irmã apoiou o irmão no Espírito, antes de tudo carregando o peso de uma comunhão tão única com o Cristo crucificado.
O que será que um tal sinal exigiu de Francisco e da sua relação de fé com o Senhor? Como, consequentemente, a sua oração terá amadurecido?
Os Louvores e o Cântico nos fazem perceber algo. Que sofrimento experimentou para participar com Cristo na reconciliação e na paz de todas as criaturas? Como não pen- sar que Clara, por sua vez, apoiou Francisco com a sua presença discreta e a sua oração?
Teria visto aqueles sinais misteriosos apenas no corpo do Poverello agora sem vida? Ou teria conseguido limpar as feridas, pelo menos com o desejo ardente, como parece aludir no sonho-visão da mama? Clara, com grande liberdade de linguagem, narra como se vê subindo por uma escada alta, com a agilidade do afeto, carregando os sinais do serviço humilde – o jarro, a toalha – para, no topo da escada, alcançar Francisco que, agora conformado com Cristo, lhe oferece o seu seio, ao qual ela é repetidamente convidada a achegar-se: «vem, recebe e mama»18.
Francisco recebe de Clara, «vestígio da Mãe de Deus»19, a compaixão e a intercessão materna, mas, numa ousada reciprocidade, é ela quem se encontra como filha na posição de receptora. Como não vislumbrar nisso uma singular «Pietà» franciscana?
Acredito que Clara intuiu os apertos pascais de Francisco e participou deles. Não é por acaso que a sua doença se segue precisamente a esses acontecimentos. Terá sido também essa a sua forma de apoiar Francisco e os frutos do dom de amor recebido?
Queridas irmãs, saúdo-vos nesta memória dos Estigmas, que tentei ler convosco brevemente, até ao coração da experiência de Clara. Podeis fazer este caminho através da experiência cotidiana de seguimento, na dimensão esponsal da vossa vocação vivida na Igreja para o mundo. Também a vós hoje é dito: «Vede como Cristo se uniu à sua esposa, vede com que alimento nos sacia»20.
É com este impulso que nos recordamos na oração de louvor e de intercessão, para nos guardarmos mutuamente na vida segundo o Evangelho, pérola verdadeiramente preciosa que o Senhor nos confiou na Igreja para o bem do mundo.
Com a Bênção Seráfica, saúdo-vos com afeto de irmão. Fraternalmente,
Fr. Massimo Fusarelli, OFM
Ministro geral