2º dia do retiro dos Frades do Convento na experiência da pandemia

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Paz e Bem.

A Fraternidade Franciscana do Convento da Penha iniciou no começo da semana um retiro de reflexão da experiência da pandemia. “Ressuscitou ao Terceiro Dia“, trata-se de uma Leitura Bíblico-Espiritual da Experiência da Pandemia, elaborada pela Conferência Episcopal Italiana (CEI).

A proposta apresenta temas das tristezas e as angústias dos homens de hoje com as inquietudes dos discípulos no tempo de Jesus. Junto a isso, reflexões do Santo Padre em tempos de pandemia. O cume dos momentos celebrativos e de reflexão é a partilha do caminho criativo da “Esperança do Domingo”.

Vamos refletir, diariamente, aqui no site do Convento os temas que os Frades meditam no retiro.

II – SEGUNDO TEMA DO RETIRO

 O Drama da Sexta-Feira 

«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mt 27,46). Na narrativa do Evangelho, o grito saído do coração de Jesus Crucificado permanece, por ora, sem resposta. Podemos imaginar que também os familiares de Jesus ou seus amigos, quem ficara próximo ou quem se afastara, tenham feito suas próprias, aquelas palavras: «Deus nosso, por que nos abandonaste?».

Nestes meses de pandemia, todos nos perguntamos sobre o sentido de uma experiência tão imprevisível e trágica. «E se fez noite sobre toda terra» (Mt 27,45): é como se aquelas três horas, do meio-dia às três da tarde da Sexta-Feira, se tivessem agora dilatado, envolvendo nosso mundo com as trevas do sofrimento e da morte.

A pandemia revelou a dor do mundo: de certa forma a produziu e a produzirá também no futuro, com consequências econômicas e sociais vastas e persistentes. Trata-se de sofrimentos profundos: como a morte de pessoas queridas, sobretudo de idosas, sem a proximidade do afeto familiar, o sentido de impotência dos médicos e enfermeiros, a perda de rumo das instituições, as dúvidas e crises de fé, a redução ou a perda do emprego, a limitação das relações sociais.

A pandemia também despertou, bruscamente, quem pensava em poder dormir em segurança, no leito das injustiças e da violência, da fome e da pobreza, das guerras e das doenças: desastres causados em boa parte por um sistema econômico-financeiro, fundado sobre o lucro, que não consegue integrar a fraternidade nas relações sociais e a custódia da criação. O coronavírus deu um choque na superficialidade e na negligência, denunciando outra pandemia, não menos grave, lembrada, muitas vezes, pelo Papa Francisco: aquela da indiferença. A imagem do mundo, colorido por zonas vermelhas, com base na difusão do vírus, faz pensar na imagem bíblica da terra “vermelha”, porque banhada pelo sangue do irmão que “grita” a Deus (cf. Gen 4,10).

Tudo isso é como que resumido pelo brado de dor lançado do Crucifixo em direção ao céu, quase uma acusação a Deus, uma dramática pergunta de sentido posta diante da morte: por que tanto sofrimento no mundo? É a interrogação que ressoa no coração de todos, crentes e não crentes, e que pede para ser recolhida.

No Calvário, porém, existe mais. Próximos da cruz estão algumas mulheres, o discípulo amado, o centurião, Nicodemos, José de Arimateia: poucas pessoas, certamente, mas representantes de um resto de humanidade capaz de “permanecer em pé” sob a cruz (cf.Jo 19,25), para fazer companhia a Jesus, para acompanhá-lo até a morte, para garantir-lhe uma sepultura digna. Aquela Sexta-Feira revela-nos, assim, um dia não só de violência e morte, mas também, de piedade e partilha.

Se olhamos nosso presente, à luz dessa cena, não podemos não reconhecer que, antes de tudo, os médicos, os enfermeiros, os trabalhadores sanitários, “estiveram em pé” sob a cruz das pessoas contagiadas. Os ministros das comunidades, os colaboradores pastorais e os voluntários, os catequistas e os operadores da Cáritas têm aliviado pobrezas materiais, psicológicas e espirituais. Os jornalistas trouxeram imagens e palavras de esperança às casas, aos hospitais, aos centros para anciãos e às estruturas de detenção. As forças da ordem e tantos voluntários desenvolveram seu serviço à coletividade, com coragem e dedicação. Às normas restritivas, ditadas pelas instituições nacionais e locais, os cidadãos responderam, substancialmente, com grande sentido de responsabilidade.

Mesmo se, às vezes, não faltassem dificuldades, as famílias se revelaram espaços de relações novas, verdadeiras e próprias “Igrejas domésticas”, nas quais floresceu a oração, a celebração no tempo Pascal, a reflexão e as obras de caridade. Também, assim, foi redescoberto o “sacerdócio batismal” e aquele “culto espiritual”, que nem sempre recebia o justo espaço na vida de nossas paróquias. As confissões cristãs encontraram-se por alguns momentos de oração, aprofundando os tradicionais vínculos ecumênicos; e algumas comunidades muçulmanas e de outras religiões expressaram proximidade e solidariedade.

Olhando bem, a Sexta-Feira Santa da história humana traz consigo o abismo da dor, mas, também, gestos novos de fé e de caridade, aderentes às fragilidades e atentos às relações pessoais. Jamais, como agora, os apelos de Papa Francisco na Evangelii Gaudium soam como verdadeiro programa pastoral: «A realidade é superior à ideia» (n. 231); «Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e comodidade de se agarrar às próprias seguranças» (n. 49); «Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que, ao mesmo tempo, cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã» (n. 169).

O Silêncio do Sábado 

 «E foi sepultado» (1Cor 15,4). Depois da morte, Jesus deixou que O pusessem da cruz, O estendessem sobre a terra, O envolvessem em panos, O colocassem no sepulcro e O obscurecessem por grossa pedra.  Aquela que o corpo de Jesus sofre é uma passividade preciosa, que revela nossa própria passividade: viemos ao mundo porque queridos e acolhidos por outros, fomos alimentados, nutridos e vestidos por outros e, ao final, não seremos mais donos de nosso corpo, entregue a outros e à terra. Queiramos ou não, somos “dependentes”, somos limitados.

O vírus desferiu um golpe fatal no delírio da onipotência, no cientificismo autossuficiente, na tendência prometeica do homem contemporâneo. Criou profunda inquietude, quase um trauma planetário, especialmente, nas zonas ricas e industrializadas da terra: uma perda especular com relação ao sentido de segurança que, facilmente, se tornou bravata. Improvisadamente, também, essa parte da humanidade teve que fazer as contas com o limite, com a própria entrega nas mãos do outro, diferente de si mesmo, com a enorme pedra na entrada do sepulcro.

E damo-nos conta, como recordou Papa Francisco, que «estamos no mesmo barco» (27 de março de 2020): não existem naves seguras e jangadas quebradas, mas um único grande navio, sobre o qual poucos acreditavam que poderia ser possível reservar compartimentos privilegiados. Agora – poder-se-ia dizer – «estamos no mesmo sepulcro»: compartilhamos medo e morte, ansiedade e pobreza. Todos, sem distinção, temos pressa para sair do sepulcro. Queremos ressurgir logo depois do Gólgota. Mas, nessa pressa esconde-se uma tentação: aquela de considerar a pandemia um terrível parêntesis, em vez de prova para crescer; um ‘chrónos’ que passe o mais velozmente possível, antes que um ‘kairós’ a ser acolhido e, a partir do qual, deixar-nos ensinar.

O dia depois da morte de Jesus é marcado pelo silêncio. Não um silêncio vazio, mas pleno da espera e da partilha. Jesus «aprendeu a obedecer das coisas que sofreu» (Hb 5,8). O sofrimento, enquanto tal, não é jamais procurado e adquirido, mas pode tornar-se escola. Nas vicissitudes dramáticas de um evento que não escolhemos, nos é dada a possibilidade de entrar com humildade, purificando nosso olhar e nossa própria fé.

Nesses meses, infelizmente, foram também relançadas interpretações teológicas enganosas sobre as origens da pandemia, apresentada como punição ou flagelo de Deus pelos pecados dos homens. São interpretações que possuem o sabor amargo das palavras dos amigos de Jó, que, presumindo em dar explicação “lógica”, acabam por não sentir a dor dos sofredores e, logo, não pensam segundo o Deus da Bíblia.

No silêncio do Sábado, emergiu outra atitude desordenada: a tentação do milagre. Alguns gestos, que pouco têm a ver com a humilde pureza da Liturgia, desvelam, muito mais, a fadiga de permanecer no sepulcro, compartilhando as perguntas e as ansiedades de cada pessoa diante da morte, aceitando dirigir-se com maturidade e obedientes a Deus, que é onipotente no amor.

A experiência deste tempo, com força, trouxe à tona outro aspecto importante do Sábado santo: o jejum eucarístico. Emergiu um sincero apego de muitos presbíteros e fiéis à Liturgia da Missa e à comunhão. O estreito vínculo entre o corpo eucarístico e o corpo eclesial – do qual a célebre expressão “a Eucaristia faz a Igreja” – mostrou-se mais uma vez verdadeiro, enquanto vivido na forma da falta. Mas, a cena era insólita: de uma parte, o corpo eucarístico vinha representado sobre o altar pelos presbíteros; de outra, o corpo eclesial, na sua forma de assembleia, era forçado a permanecer distante do altar, da mesa e da comunidade. Tratava-se de separação não natural, por mais que as transmissões televisivas pudessem, em parte, supri-las, integradas pelas celebrações domésticas. Todavia, o jejum eucarístico prolongado também pertence à experiência do habitar no sepulcro, na espera da ressurreição. Da partilha da situação, à qual tantas comunidades cristãs esparsas pelo mundo são forçadas, por causa da perseguição ou por falta de sacerdotes, pode-se aprender a apreciar mais a celebração eucarística e o mandato da caridade, que nos são entregues: a comunhão eucarística é ultimada, de fato, à comunhão eclesial e ao serviço prestado aos irmãos (cf. 1Cor 11,17-29).

Permanecer no sepulcro, em paz e com coragem, não é tão fácil: é, porém, passagem necessária para a escuta atenta dos irmãos, para a partilha profunda das fragilidades, para a recuperação do silêncio orante, para a confiança autêntica no Senhor.

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