Íntegra da homilia do Pe. Kelder no 6º dia do Oitavário

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Celebramos hoje, aos pés da Virgem da Penha, nesse lugar sagrado, lugar de maior expressão religiosa e da fé de nós, capixabas, a Ressurreição do Senhor e as alegrias de Nossa Senhora. Este lugar bendito, que há séculos desponta no céu capixaba recordando a ternura maternal da Mãe do Senhor, em meio a tanta dor e deventura. Este lugar que nos recorda, a cada ano, com o Oitaváro de Nossa Senhora da Penha, as alegrias da Mãe do Senhor, com a Ressurreição de seu Filho.

Sim! Foi grande a alegria da Mãe do Senhor quando os discípulos anunciaram a ressurreição de Jesus. Uma alegria tão grande, quanto grande foi a sua dor aos pés da cruz, ao receber em seus braços e aconchegar em seu peito o corpo inerte e sem vida de seu Filho, brutalmente assassinado, vítima de um conluio para preservar os interesses mesquinhos das autoridades políticas e religiosas de Israel, como deixou bem evidente São Pedro na Primeira Leitura que ouvimos nesta tarde: “Ficai, pois, sabendo e todo o povo de Israel: ‘é pelo nome de Jesus Cristo, de Nazaré – aquele que vós todos vós crucificastes e que Deus ressuscitou dos mortos – que este homem está curado, diante de vós. Jesus é a pedra que vós, os construtores, desprezastes, e que se tornou a pedra angular”.

Sim! Grande foi a dor, a tristeza e o pranto de Maria, quando recebeu em seus braços o corpo inerte e sem vida de seu Filho Jesus, como é grande a sua dor, mães capixabas, que, há décadas, recebem nos braços os corpos inertes e sem vida de seus filhos que tombam nas escadarias, becos, ruelas e praças dos morros e planícies das periferias e do interior do Estado.

E que mãe não sentiria tamanha dor ao receber em seus braços, sem vida, a vida gerada em suas entranhas ou plantadas em seu coração, coração de seu coração, carne de sua carne, sangue de seu sangue, espírito de seu espírito, alma de sua alma?

Que mãe não se angustiaria ao ver jorrando no chão, encharcando a terra, a seiva sagrada da vida que brotou de sua própria seiva ou que adotou como parte de seu corpo, misturando-se à lama e ao lixo, como jorrou o sangue de Cristo nas ruas de Jerusalém e como jorra o sangue dos jovens e adolescentes aqui, no Espírito Santo?

Só esse ano, já são mais de 320 corpos assassinados, mortos, sem vida, sepultados no Espírito Santo. Quanta dor, quanto pranto, quanto desespero. Corpos pretos, pobres e periféricos.

Sim, mães capixabas! A dor de vocês é uma dor tão grande e profunda quanto foi a dor de Maria, Mãe do Filho de Deus, ao receber inerte e sem vida o corpo do Autor da Vida, Jesus Cristo.

E maior ainda deve ser a indignação de vocês ao ouvirem os porquês das mortes dos filhos de vocês. Como se já não bastassem ter tirado a vida deles de forma tão violenta, como fizeram com o Filho de Maria, ainda os tornam responsáveis pela violência que os matou.

Uns dizem que foram mortos porque são traficantes. Outros dizem que foram mortos porque são bandidos. Outros dizem que foram mortos porque são vagabundos. Outros dizem que foram mortos porque não souberam aproveitar as oportunidades que surgiram. Outros dizem que foram mortos porque foram confundidos. Outros dizem que foram mortos porque estavam no lugar errado.

Não faltam motivos, queridas e sofridas mães capixabas, para justificar a matança dos filhos que nasceram de suas entranhas e se alimentaram nos peitos de vocês, e que incomodam a sociedade só pelo fato de estarem vivos, mesmos sendo pretos e pobres, e ter os mesmos sonhos e desejos que os brancos e abastados.

Sim, mães capixabas, os filhos de vocês não estão sendo assassinados por que são traficantes, bandidos, vagabundos, foram confundidos ou estavam no lugar errado, não! Eles estão sendo assassinados porque são pretos, pobres e favelados. Fizeram isso com os antepassados de vocês, os escravos trazidos da África, e continuam fazendo com os filhos de vocês. O racismo e o culto ao dinheiro é a verdadeira causa da morte dos filhos de vocês que são sacrificados como “bodes expiatórios” para justificar a indiferença da sociedade e a incompetência do poder público em resolver o problema da violência e da desigualdade social, que são os maiores problemas que o Brasil enfrenta. E não duvidem, mães capixabas, que para impedirem os filhos e filhas de vocês sonharem, as forças armadas voltarão às ruas.

Mas, saibam, mães capixabas, que o mesmo disseram e fizeram com o Filho de Maria. Eles O prenderam, condenaram-no à morte, humilharam-no, torturaram-no, crucificaram-no, certificaram-se de Sua morte e, posteriormente, difamaram-no. E por que fizeram isso com Jesus? Porque Ele questionava e incomodava a sociedade de Israel. E o mesmo fizeram com os profetas antes dele. Jesus “morreu pela ganância da instituição religiosa, capaz de eliminar qualquer um que interferisse em seus interesses, até mesmo o Filho de Deus: ‘Este é o herdeiro: vamos! Matemo-lo e apoderemo-nos da sua herança” (Mt 21,38). O verdadeiro inimigo de Deus não é o pecado, que o Senhor em sua misericórdia sempre consegue apagar, mas o interesse, a ganância e a cobiça, que tornam os homens completamente refratários à ação divina”. (Alberto Maggi)

Mas, saibam também, mães capixabas, que não adiantou nada do que fizeram! Ele ressuscitou! A vida dele não se submeteu à morte e nem a vida dos filhos de vocês se submeterá. A morte deles, como a de Cristo, não foi em vão, porque a morte só é vã quando a vida não tem valor. E a vida dos filhos pretos, pobres e favelados que vocês geraram ou adotaram, tem tanto valor quanto qualquer outra vida humana. A vida de vocês, dos filhos de vocês, é tão sagrada quanto as demais vidas, inclusive, a vida do Filho de Maria, Jesus Cristo, o Filho de Deus.

Mas, mães capixabas, cabem a vocês mostrar o quanto a vida que vocês geraram ou cuidaram é sagrada. Cabe a vocês não deixarem que a morte de seus filhos que vocês cuidaram e amaram seja em vão. Cabem a vocês, mães capixabas, lutar, lutar, lutar novamente, e continuar lutando, porque quando o “luto vira luta”, a força da ressurreição acontece e a realidade se transforma. Foi essa a experiência bonita da ressurreição que a Igreja Primitiva fez e transmitiu para nós, conforme ouvimos no Livro dos Atos dos Apóstolos e no Evangelho de São João, nesta tarde. Os discípulos mudaram o luto em luta, e lutaram até a morte para anunciar a verdade da Ressurreição do Senhor. E um dos encontros bonitos que eles tiveram com o Ressuscitado, encontramos narrado no Evangelho de hoje de São João. Foi o terceiro encontro os apóstolos com o Senhor, após a Ressurreição.

São João afirma que era amanhecer de um novo dia, às margens do mar de Tiberíades. O amanhecer de um novo dia, à beira do mar, é sempre revigorante, nos dá ânimo, força, coragem e energia. Nos desperta para a vida. É o prenúncio de um novo tempo, um novo momento, uma vida nova. Uma vida bela e radiante como os raios do sol; grandiosa e cheia de mistérios e encantos como o mar.

O mar é tão grandioso! Ele é tão cheio de vidas, com formas lindas e coloridas! E povoados por tantos mistérios sagrados, principalmente para os povos africanos, que foram trazidos escravos para as Américas. Para trabalhar, sem direito a nada. Nem mesmo à vida e à liberdade. Ainda hoje, muitos pensam assim, que os descendentes dos escravos não têm direito nem mesmo à vida e à liberdade, e, por isso, podem ser assassinados, e por isso matam os filhos e filhas de vocês, mães pretas, capixabas.

Mas, voltando ao mar, para mim, ele sempre será um sábio amigo que dá bons conselhos. Talvez, por isso, Jesus tenha escolhido aparecer novamente aos discípulos à beira do mar, após a ressurreição, pedindo-lhes algo para comer, ao amanhecer de um novo dia.

Os discípulos tinham pescado a noite inteira e não tinham conseguido peixe algum. Às vezes, a vida é assim. A gente tenta, tenta, tenta, continua tentando e não consegue nada. É como uma noite escura, sombria, estéril, às vezes até apavorante. É como a política de segurança no Espírito Santo.

Mas, a noite escura, por mais longa que seja, passa e surge um novo alvorecer; e alguém nos interpela, nos questiona, nos provoca e nos motiva a continuar; a acreditar; a tentar novamente; a não desanimar, apesar dos esforços, muitas vezes sem resultados positivos.

Foi assim que aconteceu com os discípulos no início da caminhada, após a morte de Jesus. Eles tentavam, mas não conseguiam muita coisa. Eram muitos os obstáculos, estavam sem esperança, cansados, desanimados. É assim que reagimos diante da morte, principalmente diante de mortes tão violentas.

De repente, os discípulos viram um homem em pé, na praia, que lhes pede algo para comer. Deus é assim mesmo, manifesta-se nas horas mais estranhas. Sempre faminto, esfomeado, Ele tem uma fonte insaciável de partilha, de solidariedade, de companheirismo, de afeto, de amor, de vida. Ele sente uma fome insaciável de humanidade, uma fome insaciável de nosso amor.

Os discípulos disseram que não tinham nada para oferecer àquele estranho. Eles haviam esquecido a força da fé, o milagre da partilha, dos pães e dos peixes, que saciam a fome de uma multidão. Eles haviam esquecido o ensinamento central do Evangelho, a partilha do pão e da vida. A vida deles tinha se tornado escura e as ações estéreis, como pescaria que fizeram a noite toda.

Mas nós somos assim mesmo, esquecidos, egoístas, pensamos antes em nós do que nos outros. Prefiremos as trevas à luz. Somos, também, famintos, mas o dinheiro, de poder e de prestígio. Gostamos de guardar, de acumular. Quando muito, doamos o supérfluo e o que já não presta mais, para aliviar nossa consciência cristã e, assim, esquecemo-nos de que o problema do mundo é o acúmulo de riquezas nas mãos de poucos, enquanto a maioria passa privações.

E acabamos colocando as mazelas da sociedade nos ombros das vítimas que sofrem suas consequências, da mesma forma que colocamos a responsabilidade da violência nos jovens e adolescentes, pretos e pobres, que encontram no tráfico a única forma de se sustentar e sustentar a família, enquanto fechamos os olhos para as responsabilidades, indiferença e, muitas vezes, cumplicidade, do poder público e das montanhas de dinheiro que movem os interesses privados de quem ganha, e muito, com a indústria da violência e do encarceramento dos pobre no Estado.

Então, o estranho mandou que os discípulos lançassem a rede novamente à direita da barca. Para o espanto dos discípulos, a rede ficou tão pesada de peixes que eles sequer conseguiram puxar. Que coisa surpreendente os discípulos compreenderam naquela manhã. Com um pouco de boa vontade, ouvindo o que nos diz o Senhor, mesmo que não O reconheçamos, somos capazes de feitos maravilhosos e surpreendentes. Precisamos ouvir mais, acreditar mais, confiar mais uns nos outros.

Imediatamente um dos discípulos reconheceu Jesus e disse a Pedro: “É o Senhor”. Foi o discípulo, a quem Jesus amava, cujo nome não se pronuncia, porque seu nome não importa como, também, não importa a sua idade, a sua cor, o seu gênero, a sua raça, a sua classe social, o seu grau de instrução, a sua religião. O que importa e identifica o discípulo amado é a fé, a coragem para transformar o luto em luta, o desejo de seguir o Mestre até as últimas consequências, como ele seguiu Jesus até a morte. Agora ele podia se alegrar com os demais, ao reconhecer o Ressuscitado à beira do mar, aguardando por eles com um banquete preparado.

Sim, um banquete preparado, uma ceia com pães e peixes, a Eucaristia – memorial da paixão, morte e ressurreição do Senhor -, o banquete que o Senhor preparou para os que ele ama. O mesmo banquete que preparou para todos que tiveram o sangue derramado com a violência no Espírito Santo, cujos nomes, como também suas vidas, por serem pretas e pobres, não importam para quem, cinicamente, lava as mãos e se exime da responsabilidade de suas mortes.

Mas para vocês, mães capixabas que os geraram e cuidaram, e para nós discípulos do Senhor, a vida, a identidade, os sonhos dos filhos e filhas de vocês, são muito importantes: Karolaine Mattos, Rogério Porto, Daniel Soares, Neide Laura, Ricardo Bello, Wallace Miguel, Rafaela Leite, Mateus Gonçalves, Raul Silva, Vinicius da Silva, Flávio Santos, Antônio Carlos dos Santos, Edmo Verdes, Silvano Bezerra, Michel Vieira, Manoel Bras, Anderson Cantilho, Taiene Souza, Paulo da Costa, Josias Pinto, Fabrício Vasconcelos, Rogério Teixeira, Raphael Amarantes, Paulo Roberto dos Santos, Ezequiel da Rocha, Ednei das Virgens, Brendo Aires, Guilherme Martins, Eduardo Ferreira, Luiz Paulo de Paula, Douglas Ribeiro, João Victor dos Santos, Gilvam dos Santos, Vanderlei Amorim, Hélio de Andrade, Ruan e Damião Reis.

Esses nomes, assassinados nos últimos dez dias, e de tantos que não conseguiremos nominar nesta tarde, que morreram sacrificados como o Filho de Maria, está escrito no Livro da Vida por toda eternidade e, também, da vergonhosa história de racismo e desigualdades sociais que continuamos a escrever com o sangue derramado dos pretos e dos pobres.

Hoje, aos pés da Virgem da Penha, Senhora da Piedade e das Alegrias, renovamos nossa fé e nossa esperança, celebrando a Eucaristia, memorial da Páscoa do Senhor e dos nossos irmãos e irmãs cujos corpos, negros e pobres, foram sepultados. Mais um pouco de tempo e celebraremos nossa própria passagem. Então, peçamos ao Senhor que esta Eucaristia, memorial de sua vitória sobre a morte, “apresse o dia por nós esperado, de irmãos libertados de toda injustiça, de todo pecado”.

E transformemos nossa dor em indignação, nosso pranto em esperança, nosso luto em luta! E lutemos, lançando novamente as redes, porque uma nova luz há de brilhar no Espírito Santo!

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